As expectativas das famílias em relação às escolas e o que elas oferecem
- ou são, de fato, capazes de ofertar - estão em descompasso. De um lado, há
adultos cada vez menos presentes, seja pelo excesso de trabalho, pelos longos
deslocamentos nas megalópoles ou até pela falta de paciência, que esperam que a
escola ensine o conteúdo obrigatório e eduque os seus filhos. Do outro, as
instituições se desdobram para dar conta de uma infinidade de disciplinas
regulares e ainda são cobradas a disciplinar os alunos e abordar temas
considerados pertinentes. Tudo em quatro horas diárias.
As críticas são feitas pelo professor, educador e filósofo Mario Sergio Cortella, que lança nesta
semana o livro Educação, Escola e Docência - Novos Tempos, Novas
Atitudes. "As famílias estão
confundindo escolarização com educação. É preciso lembrar que a
escolarização é apenas uma parte da educação. Educar é tarefa da família.
Muitas vezes, o casal não consegue, com o tempo que dispõe, formar seus filhos
e passa a tarefa ao professor, responsável por 35, 40 alunos."
Cortella, que há 16 anos não escreve
livros na área educacional, fará dois lançamentos deEducação, Escola e
Docência, ambos seguidos de palestras. O primeiro será para docentes, no
dia 22, na feira Educar/Educador 2014, no Centro de Exposições Imigrantes. O
segundo, para o público em geral, ocorrerá em 10 de junho, no Teatro Tuca, da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
A seguir, Cortella fala sobre a necessidade de uma parceria entre
escolas e famílias, o impacto da tecnologia e como tornar as aulas mais
atraentes.
O senhor fala em métodos de ensino do
século 19, docentes do século 20 e alunos do século 21. É possível resolver o
descompasso?
A escola tem de ficar em estado de prontidão para acompanhar uma parcela
das mudanças, que acontecem de forma extremamente veloz. Isso porque nem tudo o
que vem do passado tem de ser levado adiante. A escola precisa distinguir o que
vem do passado e deve ser protegido, ou seja, o que é tradicional, daquilo que
precisa ser deixado para trás porque é arcaico. Autoridade docente, atenção ao
conteúdo e formação de personalidade ética são valores tradicionais. A escola
tem de estar atenta às mudanças tecnológicas, mas não se submeter a elas. Vou
dar um exemplo. Imagine se em 2004, quando foi criado o Orkut, uma escola
criasse um projeto pedagógico baseado nessa rede social. Como um projeto
pedagógico demora 10, 12 anos para ser aplicado na sequência de seriação, hoje
ele já estaria obsoleto. Já pensou se quando o pen drive foi lançado outra
escola tivesse decidido que todos os alunos deveriam organizar seus materiais
nesse formato, que, chegou-se a dizer, substituiria a mochila? Hoje, nenhum
jovem usa pen drive: eles guardam tudo em nuvens. Portanto, o que digo é que a
escola tem de ficar atenta ao novo, mas não ser refém.
Cada vez mais a aprendizagem ocorre
fora do espaço escolar. O que é preciso fazer para conquistar o aluno quando
tudo fora da escola parece mais interessante?
Vou te dizer uma coisa que parece óbvia: Ninguém deixa de se interessar
por aquilo que interessa. Nós temos de saber o que interessa ao aluno para, a
partir daí, chegar ao que é necessário. É preciso conhecer o universo
circunstancial dos alunos: as músicas que eles estão ouvindo, o que estão
assistindo de programas e vendo de desenho animado, para chegar à seleção do
conteúdo científico necessário. Temos de partir do universo vivencial que o
aluno carrega para chegar até aquilo que de fato é necessário acumular como
cultura produzida pela humanidade. Hoje, a escola não pode ser extremamente
abstrata, como no meu tempo. O conteúdo tem de ser conectado com o dia a dia.
O que as escolas precisam fazer para
encantar as crianças?
É preciso incorporar o que elas já fazem. A geração anterior, de quem já
tem mais de 30 anos, só se comunicava pelo telefone. Esta geração de crianças e
jovens voltou a escrever - no Facebook, no Twitter, no WhatsApp, em blogs. A
escola tem de aproveitar essa produção. Alguns até dirão que eles escrevem
errado. Claro, todo mundo escreve errado antes de escrever certo. Podemos
partir de uma escrita que não está no padrão para chegar à norma culta.
Conversando com pais e professores, a
impressão é de que estão insatisfeitos. As famílias se queixam das escolas e as
escolas, dos pais. O que acontece?
Antes de mais nada, não estamos diante do crime perfeito, em que só há
vítimas. Temos autor também. E essa autoria é multifacetada. A escola foi
soterrada nos últimos 30 anos com uma série de ocupações que ela não dá conta -
e não dará. Em uma sociedade em que os adultos passaram a se ausentar da
convivência com as crianças, seja por conta do excesso de trabalho, da
distância nas megalópoles ou da falta de paciência para conviver com aqueles
que têm menos idade, a escola ficou soterrada de tarefas. As famílias confundem
escolarização com educação. É preciso lembrar que a escolarização é apenas uma
parte da educação. Educar é tarefa da família. Muitas vezes, o casal não
consegue, com o tempo de que dispõe, formar seus filhos e passa a tarefa ao
professor, responsável por uma classe de 35 ou 40 alunos, tendo de lidar com
educação artística, religiosa, ecológica, sexual, para o trânsito, contra a
droga, português, matemática, história, biologia, língua estrangeira moderna,
etc, etc, etc. A escola passou a ser vista como um espaço de salvação.
E como resolver a questão?
A família precisa retomar o seu papel, porque ter filho dá trabalho. Ou
será que as pessoas não sabiam? Existe tempo, aplicação, reordenamento,
partilha das tarefas. A escola não tem como dar conta de tudo o que dela hoje
se requisita. Quando há um linchamento, querem que a escola fale sobre
linchamento. O mesmo ocorre com briga em estádios, corrupção, etc. E nem
adianta o pai ou a mãe dizer: "A gente paga, a gente quer o serviço".
É preciso uma parceria entre a escola e as famílias. Uma ideia é manter, como
algumas instituições fazem, uma escola de pais, com reuniões periódicas para
ajudar as famílias na reflexão.
De que maneira a convivência reduzida
das famílias com os filhos afeta a escola?
Nunca tivemos tanta agressividade dos alunos contra os docentes. Parte
das crianças fica sozinha, come se quiser, vai de perua para a escola e quase
não encontra adultos. Se é de classe média, o único adulto que ela encontra é a
empregada, para quem ela dá ordem. Não há uma estrutura da disciplina. O
primeiro adulto que ela encontra no dia é o professor, que pergunta cadê o
uniforme, você fez a tarefa, guarde o celular. Claro que nessa hora a criança
vem para cima. É uma geração que confunde desejos com direitos. É preciso uma
educação que seja mais firme, mas isso exige tempo, e tempo é questão de
prioridade.
Ricardo
Chicarelli/Estadão – 18-05-2014
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